CleopatraMoon

Um Mundo à parte onde me refugio e fico ......distante mas muito próxima.

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Sou alguém que escreve por gostar de escrever. Quem escreve não pode censurar o que cria e não pode pensar que alguém o fará. Mesmo que o pense não pode deixar que esse limite o condicione. Senão: Nada feito. Como dizia Alves Redol “ A diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um medíocre, é que naquele nunca a paixão se faz retórica.” Sou alguém que gosta de descobrir e gosta de se descobrir. Apontamento: Gosto que pensem que sou parva. Na verdade não o sou. Faço de conta, até ao dia em que permito que percebam o quanto sou inteligente.

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segunda-feira, março 13, 2006

O Menino dos Olhos de Cristal

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( O Mote sugerido pela Morgana)
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Pediu-me a Morgana a descrição de uma experiência profissional.
Não saberia dar-lhe vida se não a descrevesse em discurso directo na sua quase totalidade. Fi-lo já num draft de um livro que pretendo editar. Fica aqui um dos capítulos do mesmo escrito em Setembro de 2003 e atirado para uma gaveta desde aí.
São muitos casos. Todos reais.
Este é talvez dos mais marcantes porque dos mais dificeis de enfrentar.
Interrogar uma criança vitima de abuso sexual não é fácil......
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Porque não me disse fala-me de ti.... ou fala-me das tuas experiências... ou fala-me das tuas recordações, de páginas que desfolhaste na tua vida e por uma razão ou outra guardas na lembrança, de momentos teus ainda que profissionais…

Automaticamente lembrei-me de um rapazinho a quem dera o nome de “o rapazinho com olhos de cristal”.
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Tinha e tenho, uma tendência ou, uma necessidade, para dar nomes a cada personagem ou pessoa que me passe em frente. Umas vezes para melhor recordar este ou aquele, outras para não esquecer as palavras proferidas e a forma como o foram.
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Lembrava-me de ter comentado que aquele julgamento era como tantos do género, o julgamento do despudor do nosso pudor.
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A imagem passou-me inexplicavelmente pelos olhos e pela memória (...) trouxe-me a sala de audiências, o momento e o menino dos olhos de cristal....
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“Às perguntas que lhe vou fazer sobre a sua identidade, é obrigado a responder e a responder com verdade sob pena de não o fazendo incorrer em responsabilidade criminal.”(...)
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“Às perguntas que lhe fizer sobre os factos vertidos na acusação, a essas, só responde se quiser e apenas para sua defesa.”
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O arguido identifica-se secamente e quanto aos factos nega-os sem mais. (...)
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O ofendido entra na sala. A pergunta cai sobre ele de imediato, sem esperas ou preâmbulos.
-“Vais-me dizer o teu nome todo.
-(...)
- Quantos anos tens.
-Tenho 10 anos... 8 anos... 13 anos... 9 anos....
-Que fazes?
-Sou estudante.
-Conheces esse senhor aí sentado atrás de ti?
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A cabeça roda a custo por cima do ombro e os olhos focam o que teimam não ver.
Fingem que o viram.
Estão fartos de o ver, todos os dias e todas as noites.
Ultimamente só em pesadelos ou memórias de vergonha e angústia, e de sentimentos de culpa e revolta.
O som não sai da garganta à pergunta do Juiz, mas a cabeça acena que sim, que o conhece.
Como poderia não o conhecer!
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Como o julgamento deve ser gravado para maior garantia da defesa do arguido e prova do apuramento da mesma prova, o Juiz insiste:
-Conheces esse senhor? Tens de dizer em voz alta... para que fique gravado.
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E a barreira estabelece-se. Entre o menor e aquela criatura de beca preta. Também ela uma imagem preta.
As palavras martelam-lhe os ouvidos. Para que fique gravado. Para que ninguém duvide que o conheces. Para que saibam e não duvidem que a criança conhece o arguido.
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E a barreira cresce no gesto mais uma vez repetido, ou rejeitado, de olhar aquele ser ali sentado, como uma coisa negra também, mas silenciosa.
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-Sim. – o som sai tímido e nervoso da garganta e os olhos transmitem a revolta e a repulsa por estar ali e ter de responder e ser sujeito ao que ainda nem sequer começou.
-E conhece-lo porquê?
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Porquê meu Deus?! Porque tinha de lhes dizer porquê se eles já o sabiam? Pois não o chamaram ali por o saberem? As mãos torcem-se e retorcem-se enquanto os braços se esticam até aos joelhos com os dedos estrangulados uns nos outros. Os pés balançam no final das pernas procurando conforto em algo que não existe naquela sala onde todos o abafam e o olham em silêncio.
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-Não me queres dizer porque o conheces?...
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- Tenta o ser que enverga a beca, derrubar um pouquinho da barreira existente entre si e a criança.
Mas o peso de uma sala claustrofóbica, com seres claustrofóbicos, olhares desconhecidos e acusadores com o peso de uma culpa que não é dele, esmagam-no e retiram-lhe qualquer poder de resposta.
Mais uma vez a cabeça acena afirmativamente mas a garganta esgana-lhe qualquer réstia de coragem que ensaiara antes de entrar para o suplício.
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-Olha para mim, eu sei que tu não queres estar aqui. Eu também não quero fazer-te estas perguntas. Mas tenho de as fazer. Precisamos todos de saber como tudo aconteceu... se aconteceu...( aqui as coisas correram menos bem, mas prossegue em tom calmo) o que aconteceu... Se nos quiseres contar é claro. Mas se não nos contares... nunca vamos saber.
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Os olhitos voltam-se agora vendo mesmo um rosto que sorri com alguma simpatia.
O cérebro descodifica a imagem e percebe que é uma mulher.
Tem um ar protector se lhe separar a cabeça daquela capa preta.
Ignora ou tenta ignorar os outros dois, ao lado, silenciosos e observadores também vestidos de preto.
A voz tenta mostrar a vontade de comunicar mas sai quase inaudível.
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-Conheço. E os dentes mordem o lábio com força.
-E de onde? - insiste a cabeça que foi separada da beca.
-Daquela casa. Aquele dia .... esse que dizem aí....
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O diálogo parece querer ganhar forma. Com um olhar a Juiz indica ao funcionário que é altura de retirar o arguido da sala e este conduz o mesmo ao exterior.
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Apercebendo-se do facto o menor, debruça-se para a frente continuando a balançar nervosamente as pernas e aperta o rebordo da cadeira com as mãozitas pequenas e suadas.
Os olhos voltam a incidir naquele rosto de mulher que tenta a todo o custo separar da capa preta para poder dar-lhe vida.
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-Então vamos lá falar um com o outro. Conheces aquele senhor do dia (...) daquela casa... lá no teu prédio. Não é?
-Sim.
-Sabias que ele morava lá....
-Sim.
-Já o conhecias havia muito tempo?
-Sim.
-Falavas com ele?
-Não.
-Olha,... tu costumavas brincar por ali sozinho?!
-Não... com os meus amigos.
-E quem são os teus amigos?
-O Pedro, o Miguel, o Jonas...
-Brincavam a quê?
-Sei lá...muitas coisas...
-Jogavas futebol?
-Sim.
-Gostas de futebol?!
-Sim.
-Qual é o teu jogador preferido?
-O Figo.
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O tom é monocórdico mas entre os dois personagens vai-se criando um canal de comunicação em que o que existe em redor se vai esbatendo.
A certa altura dá a sensação ao Juiz que só os dois estão na sala.
É como uma sessão de hipnotismo.
Tudo o que está em redor, deixa obrigatoriamente de existir.
Um só ruído e quebra-se a ligação. É preciso criar empatia e ... fazer silêncio.
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-Os teus amigos também conhecem aquele senhor?
Bruscamente a imagem do futebol e do ídolo desvanecem-se e as perguntas difíceis voltam.
Mas a cabeça por cima da capa preta continua separada da mesma. E ele responde.
-Conheciam. O Pedro também, lá foi um dia.
-Onde?
-A casa dele do... Sr. ...deste...
-Sabes o nome dele e o que ele fazia?
-Sim.
-Então diz lá.
-O Sr. Silva. Dizem que ...não sei o que fazia.... não fazia nada.
-Foste a casa dele muitas vezes?
-Não. Só naquele dia.
-E porque foste lá?
-Ele chamou-me.
-Chamou-te para quê? Porquê?
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As mãos voltam ao rebordo da cadeira e o corpo inclina-se e balança-se.
É um rapazito franzino.
Veste umas calças de ganga e uma T-shirt azul escura sem estampados ou marcas.
Calça ténis como qualquer rapaz da idade dele e um Kispo próprio para o tempo que se faz sentir.
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-Disse que tinha um jogo de computador.
-E foste ver?
-Sim.
-Mas porque foste? Nunca lá tinhas ido. –
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Os olhos fogem como que a não querer admitir que ainda hoje pensa que a culpa é sua. Que os pais sempre lhe disseram que não se ía a casa de estranhos. Que os amigos vão achar sempre que foi um fraco....
-Foste porquê? Acreditaste nele? Querias o jogo? Achas que um homem daquela idade tinha um jogo de computador?
-O Pedro já lá tinha ido antes...jogar no computador....
-Tu não tens computador?
-Não.
-E antes... com o Pedro tinha acontecido alguma coisa?
-Não. Foi só naquele dia.
-E naquele dia... como foi?
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A cabeça da Juiz incorpora-se mais uma vez na beca, é absorvida por ela e, os traços do rosto desaparecem.
Mais uma vez é uma coisa escura em relação à qual não há qualquer sentimento a não ser o de terror.
Emite sons que não entende.
Não é voz, não são palavras, são sons que não consegue descodificar.
A sua cabeça gira entre aquela imagem informe e o dia em que foi jogar no computador.
O dia em que o homem... aquela coisa que saíra da sala... também ela só de uma cor - o negro – despiu as calças à frente dele e o obrigou a fazer o que só de pensar lhe dava medo, nojo, raiva, terror... que iria viver sempre consigo, que o iria magoar e envergonhar cada vez que o lembrasse.
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E porque cedeu?... porquê? Teve medo... foi tudo tão súbito e não percebeu nada. Já vira o pai nu no banho.
Era normal....
Tomava banho com o pai... de manhã antes de ir para a escola...
Aquele homem estava ali... sem calças.. ou com as calças pelos joelhos... não se lembra bem, ... agarrou-o, abriu-lhe os olhos desmesuradamente... disse que o matava se gritasse... que se disse-se a alguém matava também o pai e a mãe... e a irmã pequenina que tinha tão poucos meses... que queria ... queria que ele lhe fizesse... “um broche”... ele... “um broche”!...
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Que o matava... que queria que ele lhe fizesse... e agarrou-lhe a cabeça...e que o matava ... e ao pai..., e à mãe... e obrigou-o a meter aquela coisa mole e mal cheirosa na boca dele... que o matava...que o matava... e à irmã... a todos.....
.
E deu-lhe um chocolate no fim, quando envergonhado e com nojo dele e de si fugiu daquela casa para a rua, sem destino....E nos dias seguintes convidou-o mais vezes... e deixou de ir à escola e fingiu-se de doente só para não ter de descer as escadas.
.
E um dia quando ía com o pai e o viu, quase derrubava o pai com a fúria de fugir. E o pai desconfiou... e perguntou-lhe o que era... que acontecera....O coração de pai dizia-lhe que tinham feito mal ao seu menino, ao seu rapaz e, pelo olhar, fora aquele homem....
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Depois foi a conversa com o pai, o colo do pai e a sua insistência para que lhe contasse, o prometer que iam ao cinema depois de tudo esclarecido, o prometer que não diria nada ao Sr. Silva, um rebentar de choro misto de medo e uma primeira frase: - Ele disse que nos matava a todos!!!
(...)
.
-Então queres contar-me?! Para o condenar... vais ter de me contar...Ou não queres que eu saiba? Não queres que seja castigado? Não te fez nada?
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O nó na garganta solta-se e em vez de palavras saem lágrimas e o corpo já não se balança, mas é sacudido por uma dor funda e indescritível de impotência para fugir dali, materializada em soluços convulsivos. A sua cabecita só pensa: “Porque tenho de lhes contar. Eles já sabem tudo. Já contei isto tantas vezes!”
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-Eu sei que já falaste disto muitas vezes... mas sabes...- é preciso que me contes a mim também.
- Agora é para eu poder dizer qual é o castigo... a pena dele... percebes? ...Ou não queres?
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Ela parecia ler-lhe os pensamentos. Seria “mágica”, bruxa?! A cabeça voltava a ter vida a ser de gente, mulher, a sorrir e a ter olhos que comunicavam com os dele....
O contacto retoma-se e o negro da beca desvanece-se.
.
A pena dele.... Qual será o castigo que lhe vão dar.
Para ele não é imaginável.
Será igual à pena que deram aquele rapaz lá da rua que tinha assaltado a casa do João com ele lá dentro e tudo? E tinha partido tudo e até deixara o pai do João ferido e com vontade de o matar?! Levara 9 anos.
Ou será igual à daqueles que assaltaram a ourivesaria com caçadeiras sem munições mas deixaram o Daniel, o rapaz que lá trabalhava, morto de medo? Tinham levado 11 anos!
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Não, a sua imaginação não chegava lá.
Só apagando-o como nos jogos de computador... para nunca mais existir. E poder repetir o jogo para o apagar as vezes todos que se lembrasse dele... e de cada vez que o apagasse, iria lembrar-se menos dele e viver menos com aquela terrível imagem daquele dia e o peso daquela culpa que não tirava do meio do peito.
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E contou tudo àquela cabeça com olhos e um sorriso.
Disse-lhe tudo... entre lágrimas, fungadelas, vergonhas... os pormenores mais sórdidos, as palavras dele,... o como, lhe agarrou na cabeça...o obrigou a fazer aquilo que ele nem percebeu logo bem o que era e o marcaria para sempre e o seu pudor lhe dizia que não estava certo.
De forma entrecortada, sem sequência, a custo... numa raiva mista de desespero e, certeza de que só contando, sairia dali e, que quanto mais depressa o fizesse mais depressa deixariam de o fazer recordar aquele inferno, contou tudo.
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Só não lhe contou dos seus medos mais obscuros.
Dos seus pesadelos.
Do terror que foram os dias em que descia as escadas e tinha medo de o encontrar.
Só não lhe contou do medo que teve dos pais saberem e serem todos mortos.
Só não, lhe falou da dor imensa, estrangulada de vergonha e nojo por si mesmo. E dos pesadelos que ainda o assaltavam muitas vezes.
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Mas viu-lhe nos olhos que ela sabia que era assim com todos...ou seria só com ele?! Com ele estaria sempre aquele peso e aquela lembrança... só com ele. E o ódio por aquele dia em que deixara que lhe fizessem aquilo. E o ódio por si mesmo que depois de tudo ainda trouxera o malvado chocolate que o homem lhe dera.
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Como se sentia só e pequeno. Tão só naquela confusão toda de vozes e perguntas e imagens e lembranças só de uma cor – o negro – a debruçarem-se sobre si, a fazê-lo viver o que não queria recordar.
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Nas notícias que passavam constantemente sobre o caso. Na importância que tinham dado aquele homem horroroso e como tinham falado dele, preocupando-se com o que ía na cabeça dele.
Preocupando-se só com ele.... Preocupando-se em pôr em dúvida tudo e todos... expondo tudo e todos... fazendo notícia à custa daquilo que ele não queria que ninguém soubesse.... Publicando revistas com o caso em páginas de letras grandes... abrindo telejornais com a sua vida....
E no despudor de todo aquele pudor dos outros... quando a mulher só com cabeça lhe perguntou:
.
-Que sentes sobre tudo isto agora? Ainda tens medo dele?
-Não quero que ninguém me fale mais disto. Tenho muita vergonha e tenho Muito, Muito Ódio!!! Não quero voltar a falar disto.
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No mesmo dia o pai e a mãe também foram ouvidos.
A mãe, chorou sentindo-se culpada por o deixar brincar na rua com os outros e não estar 24h00 ao seu lado.
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O pai disse que estava cansado daquilo, que deixassem o miúdo em paz.
Que dessem ao farsante, a pena mais alta que lhe pudessem dar e fosse equivalente ao sofrimento do filho.
Com pudor ainda disse baixinho em voz quase inaudível mas que soou como o estampido de um tiro na sala do Tribunal:...”Só a pena de morte”.
..

O Juiz ainda pensou em reagir... dizer algo ... fazer alguma observação.
Mas, por pudor perante a dor de um cidadão, de um pai, que não percebe porque é mais pesada a pena de quem atenta contra bens patrimoniais, do que a de quem rouba a alegria de viver e marca uma criança na sua intimidade até ser, e ainda enquanto é, homem ou mulher, não conseguiu dizer que o Bem Supremo é a Vida e que nada poderá atentar contra ela, e nunca aquele colectivo, ainda que fosse implementada a morte como pena, assinaria uma sentença de morte... .
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Como iria explicar aquele pai, que é punido com prisão de 1 a 8 anos quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa.
Que se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos;
Que é punido com pena de prisão até 3 anos quem praticar acto de carácter exibicionista perante menor de 14 anos;
Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa obscena ou de escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
Utilizar menor de 14 anos em fotografia, filme ou gravação pornográficos;
Exibir ou ceder a qualquer título ou por qualquer meio os materiais previstos na alínea anterior; ou
Detiver tais materiais , com o propósito de os exibir ou ceder;
E que quem praticar os actos descritos com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
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Como dizer-lhe que qualquer destas penas é inferior às do crime de roubo ou do dano qualificado?!
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Ou como explicar-lhe que é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias quem praticar actos sexuais com adolescentes, entre os 14 e os 16 anos, sendo maior e tendo com eles cópula, coito anal ou coito oral , abusando da sua inexperiência.
E explicar-lhe que esta pena é igual à de quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta, sem autorização de quem de direito, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
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E o Juiz silenciou... a vontade de dizer também que, enquanto Viva, a Vida continua a ser o mesmo Bem Supremo e que devem ser revistas as penas de todos os capítulos do Título I do Código Penal...porque todos eles são crimes contra esse Bem Supremo e que, qualquer crime desse capítulo não devia ser despudoradamente punido com uma pena inferior a qualquer crime contra o património...
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Mas, por pudor, o Juiz manteve-se em silêncio.
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ACCB - Setembro de 2003 copyright

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15 Comentários:

Blogger DarkMorgana disse...

Obrigada por contares uma experiência tua.
Fez-me chorar por ser estar tão bem contada e por ser tão real e tão triste.
E por acontecer a tantos outros meninos com olhos de cristal.

E não consigo perceber mesmo, porque é que, hoje em dia, estas penas são inferiores às de crime de roubo ou de dano qualificado?!

Será que uma pessoa vale menos do que um carro?

13 março, 2006  
Blogger Vítor Sequinho dos Santos disse...

Belíssimo texto.
Não encontro palavras para descrever quanto gostei de o ler e reler.
Conheço tão bem a história que narra, embora com outros personagens (ou melhor, outros actores - as personagens são as mesmíssimas que descreve) e outros cenários...

13 março, 2006  
Blogger Apache disse...

A história é triste... muito triste! O texto é excelente, de um realismo descritivo impressionante.

14 março, 2006  
Anonymous Anónimo disse...

Só consigo deixar dois comentários:
Um para elogiar a escrita. É tão fantástica que a “cabeça” da escrita se desliga (por momentos) da “história”.
Outro para manifestar que li, com muita dificuldade, até ao fim.
É arrepiante.

14 março, 2006  
Blogger xavier ieri disse...

Digo o que penso, sem peias.
O texto não é belíssimo, nem belo, nem coisa nenhuma desse lado do espectro.
E isso nada tem a ver com a sua qualidade literária.
Um texto é o seu conteúdo.
Caso contrário é apenas uma mancha de palavras.
E o conteúdo nada tem, nada relata de belo, mas de horrível.
É um texto capaz de nos estragar o dia, se lido logo pela manhã, como eu fiz.
Este tipo de textos tem de ser contextualizado para poder ser editado.
Quem lê isto?
Lê-se isto com gosto?
Não!
Então porque é que se diz que é um belíssimo texto?
Onde está a sua beleza?!
Onde está a beleza, na descrição de um quadro de abuso sexual de crianças?!

Cleo,
Espero que leia com olhos de ver o que estou a dizer.
Penso que o apache resume muito bem: a história é muito triste.
É mesmo completamente indigesta.
E, repito, isso nada tem a ver com a sua qualidade literária.

14 março, 2006  
Blogger João disse...

Bem -Haja por esta partilha. Não basta ouvirmos falar do mar e do amor é preciso meter a alma na terra para crescermos como as raízes. Ouvi-la faz-me respirar. Um beijo

14 março, 2006  
Blogger Vítor Sequinho dos Santos disse...

Xavier

Nada de confusões.

É a narrativa que é belíssima, não a situação, que é, obviamente, do mais horrendo que há!

E têm-me passado pela frente várias deste calibre (e estou a lembrar-me de uma bastante pior) - por isso me identifiquei tanto com as palavras da autora do texto, por isso conheço tão bem os pormenores que esta tão bem descreve e os sentimentos que ela evoca.

O texto consegue retratar magistralmente o horror, não tanto do abuso, mas do que é o reviver deste último, por parte da vítima, que a prestação de um testemunho impõe. O dramatismo que é, para a vítima, ter de voltar a estar no mesmo espaço do agressor, ter de o encarar, ter de contar coisas que a magoam profundamente, ser interrogada no ambiente de uma audiência de julgamento...

Escrever como a autora do post escreveu sobre um tema destes, com a sensibilidade que revelou, é notável - e foi isso que eu elogiei. Ainda bem que o escreveu.

14 março, 2006  
Blogger Jorge Moreira disse...

Querida Cleo,

Fiquei muito comovido ao ler esta história real e hedionda que sabiamente nos transmitiste.
Concordo perfeitamente contigo. A vida é o maior bem. Aquele crime, é de certa forma, roubar a vida a uma criança. A punição deveria ser muito mais em conformidade.
Obrigado pela partilha!

Quando à Espiritualidade, concordo, sente-se. No meu trabalho digo isso mesmo.
TAF.’.
Jorge Moreira.

14 março, 2006  
Blogger xavier ieri disse...

Caro v.s. santos,
li e compreendi a sua posição em resposta ao meu abalo.
E concordo consigo.

Devo dizer que, logo pela manhã, começar a ler semelhante relato, para depois o continuar a ler, por ser de alguma forma de leitura apelativa, é do pior.

Eu, a quem o máximo que pode acontecer logo pela manhã é confrontar-me com o Estado num papel diferente do de pessoa de bem, tenho o maior respeito e apreço pelos colegas que, repito, logo pela manhã se vêm confrontados com situações semelhantes à descrita pela Cleo.
Super-mulheres e super-homens, sem dúvida.

E quanta firmeza, quanto trabalho de auto-reabilitação não será necessário fazer, diariamente, para manter o sótão arejado.

Traz-me até à lembrança os valadores do ribatejo, aqueles que todo o dia, todos os dias, andavam metidos em lama, abrindo valas.
Mas depois, ao fim de cada dia, vestiam-se impecavelmente e de meia branca.
O contraste demarcava-os do estigma.
Era a sua forma de arejar.

Abraço

14 março, 2006  
Blogger Vítor Sequinho dos Santos disse...

Pois é, meu caro Xavier.

Não é trabalho fácil, mas tem de ser feito.

Como manter o sótão em ordem?

É simples: Pego na minha filha ao colo quando chego a casa, dou-lhe o beijinho que tantas crianças nunca tiveram e reitero o desejo de que ela nunca tenha de passar por algo semelhante ao que os meninos e as meninas que estiveram à minha frente durante o dia passaram.

Tem resultado.

Abraço.

14 março, 2006  
Blogger JFMN disse...

O texto está em draft. Se estivesse em rascunho estaria certamente melhor.

14 março, 2006  
Blogger Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Cleo

Não sabia que escrevias tão bem, ou seja, que eras escritora.

Um caso que infelizmente não é raro, triste...

Um beijo

14 março, 2006  
Blogger Joana disse...

Ao ler-te fiquei sem palavras.
Por doer tanto, mesmo não estando de perto, mas certamente por não conseguir imaginar um pouco da dor desse(s) menino(s), que morrem por dentro, que deixam de acreditar e de sorrir...

Sinto mágoa por existir um código penal não desproporcional e injusto. Sei que está para sair um novo código penal, sabes dizer que mudou alguma coisa no que se refere aos capítulos do Título I???

Obrigada pela partilha...

Beijo

14 março, 2006  
Blogger Bird disse...

Minha Querida Cleo...

O que escreves descreves tão real tão verdadeiro tem a tua força a força que arrasa montanhas quando é preciso. PUBLICA E NÃO DEMORES MUITO.
Não preciso dizer-te o quanto me aperta a garganta... Por eles, por todos os meninos, PUBLICA E NÃO DEMORES MUITO.

Abraço-te muito e beijo esses meninos tanto

16 março, 2006  
Blogger Cleopatra disse...

Ainda não tinha dito nada porque vocês disseram tanto.. que tanto é TUDO!
1 Beijo.

17 março, 2006  

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