CleopatraMoon

Um Mundo à parte onde me refugio e fico ......distante mas muito próxima.

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Localização: LISBOA, Portugal

Sou alguém que escreve por gostar de escrever. Quem escreve não pode censurar o que cria e não pode pensar que alguém o fará. Mesmo que o pense não pode deixar que esse limite o condicione. Senão: Nada feito. Como dizia Alves Redol “ A diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um medíocre, é que naquele nunca a paixão se faz retórica.” Sou alguém que gosta de descobrir e gosta de se descobrir. Apontamento: Gosto que pensem que sou parva. Na verdade não o sou. Faço de conta, até ao dia em que permito que percebam o quanto sou inteligente.

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segunda-feira, julho 17, 2006

A imagem tantas vezes repetida

( Enigmas de Gala - Dali)

Subitamente pensei escrever-lhe sobre a minha atracção pela cultura árabe.
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Escrever-lhe sobre as relíquias que guardo num velho baú que herdei de uma avó que por sua vez o herdou de uma sua avó e onde escondia um saco velho de algodão e seda com “Khat”. Mesmo entre sedas e flores secas, cartas de amor e saudade juntas com laços de cetim, jóias e bijuteria, aquela substância não perdia o seu aroma.
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Lembrei-me da primeira vez que partilhara aquele segredo do estimulante árabe que tomado, mastigado, bebido em chá ou fumado, não passava de um estimulante com poderes profilácticos e psíquicos…segredo de antepassados proveniente da África oriental – península arábica… a substância dos mágicos e das feiticeiras, que fazia ganhar batalhas e ajudava a preparar estratégias e a ganhar coragem para as levar a cabo… a substância mágica que terminava bem ou mal qualquer história de amor.
Agora tornada a pastilha elástica do homem árabe, como o tabaco do ocidental. Mas não… isso iria parecer que apoiava uma cultura que nada tinha a ver com a minha mentalidade de mulher ocidental.
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E, depois, para falar-lhe disso preferiria falar-lhe do silêncio dos chefes de Estado no que respeitava ao sofrimento das mulheres árabes no início de um século que é o XXI. Na vivência dessa mulheres em cidades escuras e velhas com o mínimo de bens e sem qualquer noção de regras de higiene, cuidados básicos de saúde ou sequer respeito. Preferia falar-lhe então das arbitrariedades cometidas por uma sociedade dominada pelo mais forte e em que os mais fracos eram as mulheres e as crianças. Uma cultura que aos meus olhos de mulher ocidental não podia deixar de ser chocante e revoltante e, em relação à qual, apesar disso, ninguém levantava a voz.
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No Iraque uma mulher doutorada em literatura árabe venderia um livro seu por 125 dinares por cópia, esperando amortizar os 3 000 dólares que lhe custou produzi-lo. Três mil dinares, correspondia, em Março de 2003, a, mais ou menos, o equivalente a 1,5 euros.
E eu, nem era doutorada em literatura e pretendia escrever. Escrever para ele. Uma tentação escrever..
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Podia contar-lhe uma história das arábias.
Lembrava-me daquele homem moreno… moreno não era o termo correcto. Era mais, tisnado pelo Sol, castigado pelo Sol.
Sentara-se na minha frente porque lho permitira ao ver-lhe os sapatos velhos e gastos e as mãos marcadas pelo sofrimento que não era só seu.
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Tinha o rosto caído e os olhos fixos no chão encerado no dia anterior. O ar condicionado tentava apagar-lhe a imagem estranha de um homem destruído, desanimado e, derrubado numa idade em que os sonhos já ganharam forma no ocidente.
Olhei o auto na minha mão e reparei que tinha 44 anos.Chamava-se Mohamed Abdul Ali Ka, era egípcio, nascera no Cairo, vivia agora em Lisboa, numa rua que não interessa, e fora detido na noite anterior na sequência de uma rusga por não ter documento actualizado que lhe permitisse permanecer em Portugal.
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Tinha de estabelecer contacto com ele mas, até ali o único contacto que estabelecera fora o olhar fixo no seu que depois baixara, amarfanhado pelo peso do meu.
O intérprete sentara-se já para assistir ao primeiro interrogatório e aguardava que eu desse início ao mesmo.
Gosto de me dirigir às pessoas que tenho na minha frente mesmo que não falemos a mesma língua.
Gosto de os olhar nos olhos e que percebam mais do que as minhas palavras, mesmo quando não temos o mesmo código.
A pergunta fatal surgiu e perguntei-lhe o nome. A resposta surgiu também espontânea sem necessidade de interpretação e agora com um pouco mais de segurança. Levantara-se e perdera um pouco o ar amarfanhado e perdido. Não me olhava ainda de forma natural nos olhos mas, a pouco e pouco iriamos estabelecer comunicação.
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Perguntei-lhe o que a lei me obriga e o porquê da sua estadia no meu país. Há quanto tempo cá estava e o que fazia.
Abdul era engenheiro no Cairo. Tinha 6 filhos com idades compreendidas entre os seis e os dezoito anos. A mulher era professora mas, neste momento não podia trabalhar porque ele não estava lá e ela tinha de tratar dos filhos.
Mandava-lhe a maior parte do magro salário que ganhava em Portugal como ajudante de pedreiro numa obra qualquer de que também não interessa o nome. Mesmo sendo magro, o salário ganho em Portugal tornava-se superior ao seu como engenheiro no seu país.
Viera para Portugal pensando ficar, conseguir autorização de residência e depois, mandar vir a família. Estava à espera dos papéis do SEF e, o cartão que mostrou, confirmou o alegado embora o prazo dado estivesse já ultrapassado.
Não fizera nada de errado, não cometera nenhum ilícito. Estava apenas indevidamente documentado e... era árabe.
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Perguntei-lhe que faria se ficasse preso depois do interrogatório.
Os seus olhos de homem árabe, atravessaram a estrutura do edifício onde nos encontrávamos, as mãos juntaram-se numa prece e as lágrimas romperam. Num gemido ouvi-lhe uma frase que não entendi mas, cujo o tom, me humedeceu os olhos também a mim.
A voz do intérprete repetiu em Português: - “ Então só me resta rezar!”
Olhei o diploma legal à minha frente e o homem que mandara mais uma vez sentar porque não suportava o peso das suas lágrimas silenciosas.
Ele estava ali não só em busca de dinheiro, estava ali por razões bem mais óbvias e ele sabia que eu sabia isso.
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Sem hesitar perguntei-lhe:
- No seu país tinha algum envolvimento político? - o silêncio foi a resposta e os olhos cravaram-se mais uma vez no chão. Desta vez as lágrimas secaram mas a resposta não veio. Insisti. Estou habituada a fazer a mesma pergunta de variadas maneiras. A falta de resposta ou a resposta evasiva, são situações que não me perturbam e, conforme o tom da resposta, assim será a forma da nova pergunta.
– Era perseguido por razões políticas?
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Desta vez deixei que o silêncio pesasse mais que a pergunta e os olhos dele ergueram-se para se fixarem nos meus. As mãos contorceram-se hesitantes e a cabeça acenou afirmativamente.
– De que tipo se posso saber. Preciso de confirmar a verdade da sua resposta.
- Anuar Sadat falecido presidente do Egito corajosamente desafiou a sabedoria convencional de sua época. Sob sua liderança o Egito foi o primeiro estado árabe a firmar um acordo de paz com Israel. Por causa disso ele foi assassinado. Eu pertencia a um grupo de militantes que têm lutado em guerrilhas subterrâneas contra o atual governo.
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Disse-o com convicção. Mesmo com orgulho. Um certo receio atravessou-lhe os olhos escuros e profundos, mas a coragem com que confessara o seu envolvimento político conferia ao que fora dito naquela sala, um inegável sentido de verdade. Ele era um perseguido político porque não lhe podia chamar um refugiado politico.
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- Isso obrigou-o a sair do Cairo?
- Sim . Estive preso. Em Tora. Consegui fugir numa saída de fim de semana. A minha ,mulher desde que estou preso, não oficialmente, porque oficialmente eu não faço parte dos detidos, não pode receber o salário do seu marido, nem viajar, nem casar uma filha, nem sequer enterrar um descendente…
A amargura embargava-lhe a voz e ameaçava paralisar-lhe os músculos da garganta.
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Ele falava verdade, os homens que se encontram presos como ele, não foram submetidos a qualquer julgamento, não estão em prisão preventiva, não existe qualquer documento que registe a sua condição de prisioneiros e nem mesmo lhes é reconhecido o direito a ter defensor.
Nestas condições de vida na prisão, as famílias dos detidos têm que inventar formas de lhes proporcionar alimentos, roupa, livros e tabaco.
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Do Cairo à prisão de Tora vão cerca de 30 km. Uma vez que os detidos não constam de qualquer lista oficial, não existe um sistema que regule as visitas. As mulheres acorrem na esperança de que as deixem entrar e, com elas, às provisões que trazem. E, se as não deixam entrar, têm que voltar no dia seguinte e assim indefinidamente.
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Decidi omitir tais factos. Ficaria apenas em auto, que fugira por motivos políticos.Acenei-lhe afirmativamente e fui eu quem fez silêncio.
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Do Egipto, para além da fascinante civilização dos faraós, conhecia outras histórias mais actuais e menos fascinantes e, imaginei as dificuldades que a família deveria passar no Cairo para sobreviver com um chefe de família fugido à “justiça politica”.
- Com seis filhos, … - perguntei-lhe em conversa mais que em interrogatório e cuidadosamente - Deve ser difícil para sua mulher…
- As mulheres árabes entreajudam-se. As crianças são a principal prioridade. Sei que não passam fome e que vão à escola. Para além das dificuldades normais… não as maltratam isso é importante. E a família além de numerosa, é unida.
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Sorri levemente e respirei fundo interiormente. Comecei a ditar o despacho. Deixei-o evidentemente em liberdade com termo de identidade e residência obrigação de se apresentar no SEF todos os sábados pela manhã e, ordenei envio de ofício para que o SEF respondesse porque motivo a autorização de residência ainda não tinha sido concedida.
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Quando saiu olhou-me finalmente nos olhos e disse qualquer coisa na língua dele que o intérprete traduziu novamente de imediato sorrindo:- “ Que Deus a abençoe.”
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Mas eu sei que o que ele disse foi “Assamamu alaikum (pronuncia-se assamaleikon),
- “que a paz de Alá esteja contigo”...
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Não sei se o Alá a que se referia era o meu Deus. Para mim era o mesmo. As diferenças não eram nenhumas embora aos olhos dos homens e pela sua prática se tornassem enormes. Entre a Bíblia e o Corão o objectivo a atingir era o mesmo…Naquele momento já nada me dizia respeito…Vi-o sair e não desviei o olhar até que desapareceu com os seus sapatos gastos...
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Não é uma história como a do Alibábá nem como a do ladrão de Bagdad, nem como a do Aladino, mas é uma história sobre arbitrariedades de detenções que nem sequer são formais, oficialmente não existem! Uma história pequena e simples de um homem que como tantos outros se cruzam por aí connosco e são explorados todos os dias na busca incessante da mão de obra barata. E que todos os dias fogem dos que lhes cobram quantias enormes por os trazerem para um país que não é o deles. Explorados pelos que os conduzem ao suicídio colectivo e por aqueles que fingem ajudá-los, desgastam-se no meio de uma posição política e legislativa que não tem coragem de definir a sua sorte e a entrada num país.
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Da imagem dos sapatos velhos a saírem pela porta fora, fui arrastada para uns olhos azuis de mulher apavorada e assustada. Estava em Portugal havia cerca de 18 meses. Trabalhava desesperadamente para ganhar para o seu sustento. Vinte e quatro anos. Fugida dos que lhe tinham prometido um horizonte de trabalho e a queriam arrastar para um mundo de prostíbulos, dinheiro fácil e, principalmente lucros para os que a induziram a vir.Também fora apanhada numa rusga. Saíra com umas amigas e pediram-lhe os documentos. Estava apavorada! A intérprete só repetia constantemente as palavras que ela teimava fazer-me chegar: - “ Eles não podem saber onde eu estou. Eu também não posso voltar para o meu país”.
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Era biélo-russa. O pai escolheu a sua nacionalidade quando ela atingira a maioridade. Escolhera a sua própria nacionalidade: Kosovar. Isso implicava que a sua filha, tendo o pai escolhido para ela a nacionalidade paterna, teria de intervir numa guerra que não era a sua. A mãe biélo-russa nem sequer fora consultada e muito menos ela.
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Ao atingir a maioridade fugira.
Não queria pertencer a um conflito militar que não era seu e com o qual nem concordava. Era enfermeira - parteira e estava a trabalhar numa lavandaria em Portugal. Também trabalhava como empregada doméstica e fugia dos que tentavam tirar-lhe os lucros do seu trabalho. Organizados e frios eles matavam sem hesitações. Fugira de uma guerra metera-se num inferno que agora era só seu.
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Vi a sua carta de curso. Tinha uma média alta e alguns louvores como profissional.Já exercera e estava a desperdiçar-se no nosso país onde poderia exercer a mesma profissão ao abrigo da nossa lei de estrangeiros. Provavelmente o processo estava por lá, junto com tantos outros, num gabinete cheio de trabalho e vazio de tempo.
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O despacho, saiu igual também a tantos outros, mas, com uma recomendação especial de que deveria ser tido em conta o seu curriculum e de que deveria o Sr. Ministro responsável pela pasta, ter em atenção o disposto na Lei dos estrangeiros quanto à possibilidade de ficar em Portugal a trabalhar e dentro da sua especialidade.
Quando abandonou o meu gabinete perguntou-me se “eles” iriam saber onde ela estava. Pelo Tribunal nunca saberiam, foi-lhe garantido e foi-lhe ainda dito que deveria denunciar a situação.
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Passados poucos meses em Monsanto era julgado um grupo de indivíduos que atraiam, seres desesperados por uma vida melhor, ao nosso país para lhes extorquirem o pouco dinheiro que ganhassem.
Eram assim alguns dos estrangeiros que eu ouvia em primeiro interrogatório. Aterrorizados com o país onde trabalhavam, fugidos da sua pátria e, perseguidos pelas chamadas máfias de Leste que lhes extorquiam o pouco dinheiro que ía dando para sobreviver.
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ACCB - 2003
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MAI: Imigração será prioridade da presidência portuguesa da UEO combate à imigração ilegal vai ser uma das prioridades da presidência portuguesa da União Europeia, disse hoje o ministro da Administração Interna português, António Costa, durante a Conferência euro-africana sobre Migrações e Desenvolvimento, em Rabat, Marrocos.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=12&id_news=235755

3 Comentários:

Blogger DarkMorgana disse...

Cleopatrazinha...desculpa lá mas ando às voltas com os morangos lá do outro lado...
E como o tempo é escasso, nem sequer ainda tive tempo de ler mais nada. Muito menos um texto destes...sorry...

19 julho, 2006  
Blogger Cleopatra disse...

OK Morgana! Ok. Eu compreendo. Mas acaba a estória depressa. Estou "no ar" para ver o que aquilo vai dar!

19 julho, 2006  
Blogger LUA DE LOBOS disse...

nunca textos longos me assustarm embora eu seja telegráfica a escrever:) e como gostei de te ler
xi
maria de são pedro

20 julho, 2006  

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