quinta-feira, março 15, 2007

E se um dia, quando um de nós diz ao arguido, no final do julgamento:

-Quer dizer em sua defesa, mais alguma coisa que ainda não tenha dito?

....

Respondem assim:.........

_________________________________
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

A Defesa do Poeta
Poema de Natália Correia
Recitado pela autora (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)


Nota da autora: «Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do meu advogado, que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.»


* Natália Correia (1923-1993)

4 comentários:

  1. à cautela...agrava-se a pena!

    ResponderEliminar
  2. Conselho sábio o do advogado!
    bjs

    ResponderEliminar
  3. Pois... Eu se fosse Juíz (quer dizer, mal por mal, antes queria ser rico) achava que me estavam a tentar dar música.

    ResponderEliminar
  4. "Sou um instantâneo das coisas
    apanhadas em delito de paixão
    a raiz quadrada da flor
    que espalmais em apertos de mão."

    Não conhecia, é tré jóli!

    Até outro instante...

    ResponderEliminar

os escribas disseram